2. Remorso

Que me importava a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importava o seu deus, as vidas que se escolhem, os destinos que se elegem já que um só destino podia eleger-me a mim próprio e, comigo, mil priviegiados que, diziam como ele, ser meus irmãos? Compreendia, compreendia o que eu queria dizer? Toda a gente era privilegiada. Só havia privilegiados. Também os outros seriam um dia condenados.
- Albert Camus
Tribunal. No banco do juiz, o Recusante; em volta as onze outras figuras do autor são os jurados; o autor está no banco do réu, no centro da sala.

O livro caiu da estante. É acusado de não apreciar o que tem. Ao que o autor retorquiu: Se queres tanto ficar conhecido pela tua inveja, faz o favor. Tu sabes que a inveja é só outra palavra para ambição. Assim falou Zaratustra. Isso não é verdade! Eu trabalho para as coisas!

Tu reescreveste um livro como saída de emergência para o labirinto decadente em que te enjaulaste. O fio de prumo sempre este ao teu lado para seguir. Tiveste tantas vantagens em cada esquina, e optaste sempre pelos becos. Virar as costas à felicidade devia ser o maior pecado do homem. Tu não arriscas, tu não vives a vida.

Sim. Eu escrevi um livro egoísta. Torturei, matei e forcei personagens a viver a infelicidade. Cheguei a apagar algumas, ou a tentar, exilar consegui. Escrevi coisas horríveis. Diz-me quem poderia aguentar o peso de tantos funerais? E a leveza de não lidar com personagens planas. Devia estar sobrecarregado de remorsos... mas não estou.

Quando olho para trás. Continuou o autor. Eu quero que todos saibam que sim, sinto remorso. Remorso por não ter escrito mais dores, mais misérias e mais mortes. E acima de tudo, com cada gota de tinta do meu ser: tenho remorso de não te ter conseguido apagar a ti da história!

Escrever e ler: Uns são lidos, outros escritos. Alguns apagados. Todos recordam o irreversível.

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